O CÃO DO FILÓSOFO
Mira Galerias - Porto
Junho 2025
É manhã. As aves fazem-se ouvir, a madrugada lampeja. Tardo. Uma álgebra de gozos decide despertar-me: sou. Luto por um interior anónimo, quero, em mim, falar. Uma pátria morta infiltra o ávido silêncio de uma identidade. Estabelece uma teoria do efémero. Uma paterna doçura afaga-me o crânio, cria musgo na pedra que se desfaz.
Nuno Félix da Costa, O mim impossibilitado de acontecer Santo Amaro: Companhia Editora de Pernambuco, 2022, p. 87.
A exposição apresenta desenho não colorido que ensaia composições fotográficas, fotografia que deriva daqueles ensaios, aguarelas com uma dimensão de registo diarístico, surpreendentes na força da representação e na ironia da titulação, também aqui usada. Extraídos de cadernos que se acumulam no escritório, estes desenhos com títulos descritivos revelam algumas das referências do Nuno, desde a mitologia, ao antigo testamento, à literatura e à história da arte, e demonstram o seu traço numa representação orgânica de tendência surreal, onde a figuração, por vezes escultórica, se inscreve numa manta de palavras, com um gestualismo expressivo que também evoca o gosto pela escrita e pela poesia.
Escolhemos, ainda, outros trabalhos que partem da fotografia, grafites e óleos que aplica sobre fotografia. Depois de apropriada e intervencionada, a fotografia é modificada pelo uso da pintura. Em algumas séries, aplica excertos de si, ou melhor, de si como autor, como entidade abstrata.
O Nuno substitui, e por vezes duplica, elementos identitários da figura, como seja uma orelha, uns olhos ou um nariz, por outros, os seus, criando uma figuração híbrida e descontextualizada, não visando com isso projetar-se na figura representada ou iludir sobre a criação de um autorretrato. Nuno ambiciona antes criar uma figuração nova que se deseja simbolicamente não hierarquizante.
Este manipular da figura é método e é pensamento que questiona permanentemente a representação.
E é também desconcertante porque abre a leitura da sua obra a matérias da história da arte ligadas a questões de apropriacionismo no usar imagens e materiais existentes, ao mesmo tempo que convoca um sentido dadaísta na destruição dessas imagens e no uso da colagem nas composições, reinventando a fotografia, mas trazendo, ainda, a contemporaneidade à reflexão quando dilui as fronteiras do género pela inserção de elementos associados ao feminino no masculino e o seu contrário. Goethe+rosa, Fernando Pessoa Fausto, Mona Lisa alface ou Nu perfil pescoço extensão demonstram como o procedimento da substração da imagem impacta no observador, perturbando-o, ou o adicionar de elementos, ou ainda, o refazer através do grafite, do acrílico e da tinta de óleo.
O trabalho de Nuno Félix da Costa, aqui reunido no Cão do Filósofo, uma metáfora com reverberação no que se espera de uma busca pelo sublime, demonstra uma permanente tensão entre o representar, o esconder, o figurar, o sugerir e o rasurar. Insatisfeito com o discurso da figuração, o Nuno persiste no exercício de a ultrapassar, abstratizando-a, subtraindo-a, mas a ela sempre regressando numa permanente e inventiva experimentação. Obra em processo, as circunstâncias que nela interferem são pelo Nuno assumidas, dando-lhe o tempo um sentido de renovado entendimento.
Com curadoria de Adelaide Duarte O Cão do Filósofo é uma exposição de perfil antológico que reúne, pela primeira vez, um conjunto de trabalhos, em fotografia, desenho, pintura e técnica mista sobre papel. Séries produzidas desde os primeiros anos de 1980 até ao recente período pandémico, estas obras demonstram a consistência no seu percurso artístico, convocando questões de identidade e de autorrepresentação, ao mesmo tempo que as contraria numa posição anti-lírica de destruição autoral. Acresce uma atitude em manipular imagens, adicionando e subtraindo elementos, num jogo incessante de quem procura o caminho do sublime, e expondo, na verdade, um perfil disruptivo que caracteriza muito do trabalho do Nuno.
Nota Biográfica
Adelaide Duarte é historiadora de arte, curadora, professora e investigadora no Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais de Lisboa, da Universidade NOVA de Lisboa.













