EPOPEIA MÍNIMA
A FLAUTA
Alguns poetas visitaram Hesíodo na sua montanha e
viram-no humildemente inventar os sons soprando numa cana
onde fizera alguns buracos ao azar – sons que ora reproduziam
a esquadria exata do destino ora reduziam as trovoadas
à aguda condição de pegadas e indícios. Era pela repetição
que os fantasmas apareciam com forma e cor e ordem
para a qual foi preciso criar o modo de dizer. A poesia era
o fundo do pensamento enquanto contava as ovelhas – era
o entendimento das pequenas flores que os animais tragavam,
do calor na altitude e do fogo que é a loucura terna que reaviva
as palavras suculentas. Depois de Hesíodo nunca mais
os poetas viram, além das nuvens, o limite que define
uma força nua – a crueldade que é a nudez vingada
de uma rápida evidência que nenhum olhar segura
Implícita na ignorância a flauta de Hesíodo canta
o que revela, o que derruba, o que descobre. O que
louva ou amaldiçoa: tudo segue nos seus indícios
CONTENTAMENTO POR O AR SER RESPIRÁVEL
Os nomes formam-se de um crepúsculo de imagens
desabitadas no matraqueado de sons informes
Aceleram e perdem-se no irrespirável
desamor de personagens estranhas
Pretende-se o ruído organizar a noite,
confundir prognósticos – asfixia seca na aura
de personagens que seguimos até a morte os infirmar
Chamamos verdade a este desespero perante o ruído,
esta ideia de caos a que o caos escapa com elegância
Voo perspicaz e necessariamente inútil
como as personagens falam do que só falando existe
e dizem belo porque é um soneto
e muitos sonetos são belos e a sua verdade
é o escasso agrado de uma atmosfera respirável